Quem passa pela Comunidade Indígena
Capão do Zezinho, a 15 quilômetros de Ibitira (Martinho Campos), pode
ter a impressão de estar em um povoado rural como outro qualquer. Em
meio a muitas árvores frutíferas e criações de galinhas, ali se
encontram diversas casas de alvenaria, algumas com antenas parabólica,
moto ou carro na garagem, uma igreja, escola, posto de saúde, água
encanada e energia elétrica.
A Aldeia Capão do Zezinho fica a 15 km de Ibitira e a 60 de Abaeté.
Um bate papo com os moradores revela as
diferenças e as particularidades de uma cultura que nem os séculos
vividos no anonimato, enfrentando perseguições e discriminações,
conseguiram apagar. “Temos orgulho de ser indígenas”, destaca o Cacique e
pedreiro Nilvando José de Oliveira. “Cultivamos nossas danças, nossa
música, nossa história, nossas tradições, por mais que tenha misturado
muito”, completa.
Hoje,
na tribo Kaxixó, encontram-se tanto pessoas de pele vermelha amorenada,
cabelos pretos e lisos, como integrantes negros e alguns de pele e
olhos claros. É o caso do Vice-Cacique Altair Teodoro da Silva Kaxixó,
cujos olhos azuis brilham ao se declarar indígena: “Só a cor mudou, mas o
sangue é o mesmo, a raça é a mesma. Temos uma identidade”, diz.
Miscigenação Racial
Segundo levantamento da indigenista
Geralda Soares, essa miscigenação teve início no século XVIII, com o
surgimento da lendária figura do Capitão Inácio de Oliveira Campos e sua
esposa, Dona Joaquina de Pompéu, contra os quais a resistência kaxixó
foi inútil.
O
casal teria chegado na região com centenas de negros e um grande
contingente de índios Carijó, todos escravos, se apossando das terras
dos Kaxixó e reduzindo-os a jagunços. Como o Capitão Inácio fornecia
alimentos e carne para a Corte, nos tempos de D. João VI, era conhecido
como “o governo”. Teria proibido a religião tradicional dos índios,
assim como a língua e o próprio nome da tribo. “Até pouco tempo atrás, a
gente nem podia falar que era kaxixó, senão até morria. Esse conflito é
antigo”, atesta Nilvando.
Uma das casas da aldeia e o único telefone público comunitário
Ele conta que é descendente do
relacionamento de um dos filhos do Capitão Inácio com uma índia Kaxixó,
chamada posteriormente de Tia Vovó. Um dos frutos deste relacionamento,
Fabrício, teve um filho, Francisco, que se casou com uma índia carijó.
“Daí veio a Joana, depois Isabela, minha avó Sérgia, meu pai e eu, que
tenho três filhos”, relaciona. Assim, os atuais kaxixó são frutos da
miscigenação de indígenas até então vivendo em liberdade com brancos da
família de Dona Joaquina, negros e carijós escravizados.
Escola Estadual “Kaxixó Taoca Sérgia”
A Luta pelo Reconhecimento
Na década de 80, os indígenas dispersos
por várias partes do estado e do país durante o processo de colonização e
expansão territorial, começaram a se organizar em comunidades e
reivindicar seus direitos. Cacique Nilvando conta que a luta dos Kaxixós
teve início em 1986, quando houve um conflito de terra com os herdeiros
de um fazendeiro, que queriam expulsar os indígenas de suas terras.
Igreja e salão de eventos
“O presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Pompéu veio aqui para ver quais eram os nossos
direitos e trouxe o Padre Jerônimo, de Portugal. Quando começaram a
fazer a entrevista, meu tio, o Cacique Djalma, revelou que eles eram
kaxixós. O presidente do Sindicato viu que não era caso de usocapião e
chamou uma entidade que atuava na questão indígena no estado para
ajudar”.
Igreja (parte interna)
O Centro de Documentação Eloy Ferreira
da Silva (Cedefes) localizou vários sítios arqueológicos na região, com
fragmentos cerâmicos e estruturas de fornos, além de instrumentos de
pedra polida, como machadinhas, batedores, mão-de-pilão e quebra-cocos.
Bicicleta comunitária
Ao receber a denúncia da destruição
desses sítios, a Procuradoria Geral da República instaurou um processo
de investigação, incluindo um estudo sobre a identificação étnica do
grupo.
Cacique Djalma (falecido em 2011) com uma urna funerária infantil encontrada na região.
E a Casa de Rituais.
Em 2001, após 15 anos de luta, os
Caxixós foram reconhecidos oficialmente pela Funai como grupo indígena.
“O dia que a antropóloga veio trazer a notícia pra nós, ela falou:
‘agora, essa identidade vocês nunca mais perdem, porque já é reconhecida
mundialmente’. Por mais que aqui na região, algumas pessoas
discriminem, dizendo: ‘que índios vocês são? Suas casas são iguais às
nossas, andam vestidos, de carro…’ Também somos seres humanos, mas a
nossa tradição é outra”, destaca o Cacique Nilvando.
Resgate e Fortalecimento Cultural
Na Escola Estadual “Kaxixó Taoca
Sérgia”, os 29 alunos da Educação Infantil, Ensino fundamental e EJA
aprendem mais que o conteúdo tradicional da educação pública. “O ensino é
voltado para a comunidade, o que a aldeia oferece, os anseios
comunitários, a cultura do povo kaxixó, sua história, sua luta, o uso de
território”, informa a diretora Letícia Helena Kaxixó.
A tribo mantém a tradição das danças, músicas, lutas e brincadeiras indígenas.
“A escola é para fortalecer nossa
identidade”, completa a professora de Cultura Indígena, Ronilda Kaxixó.
“Nas aulas de cultura indígena, estudamos toda a trajetória da tribo
kaxixó, os antepassados, a luta dos que já se foram, o reconhecimento da
Funai, os sítios arqueológicos, os cruzeiros, como eram as casas de pau
a pique”.
Orientadas
pelas professoras de Cultura Indígena, as crianças confeccionam
artesanato para a comemoração do Dia do Índio, em 19 de abril.
Nas semanas que antecedem a comemoração
do Dia do Índio, um dos focos desse trabalho é a confecção de artesanato
indígena, como colares, brincos, pulseiras, saias, cocares, pinturas,
além de músicas e danças tradicionais da tribo.
Comemorações do Dia do Índio 2016.
O 19 de abril é comemorado com uma
grande festa, que inclui rituais e apresentações artísticas, como a
dança do jacaré, concurso de comidas típicas, rodas de conversa e
palestras, exposições de trabalhos, brincadeiras com lança, arco e
flecha, jogos e lutas indígenas, brincadeiras como as corridas do pequi e
do maracá. Em 2016, a tribo recebeu a visita de alunos de Pedagogia da
faculdade de Bom Despacho.
Outros eventos tradicionais na aldeia
são a Festa do Pequi, no mês de dezembro, o batizado na fogueira nas
festas de São João, São Pedro e Santo Antônio e a Festa de São Francisco
de Assis, o padroeiro da igrejinha do povoado, onde é celebrada missa
uma vez por mês.
Festa do Pequi (arquivo kaxixós).
Segundo o Cacique Nilvando, os 93
integrantes do Capão do Zezinho e da Aldeia Fundinho, que fica do outro
lado do Rio Pará, são católicos. “Outros kaxixós moram no entorno, em
Martinho Campos, Pompéu e outras cidades”, informa. Um levantamento da
Funasa aponta que, em 2006, havia 256 membros desse grupo.
Crianças brincando nas comemorações do Dia do Índio 2016.
Memorial Indígena
Alguns integrantes da tribo trabalham
agora na reconstrução da casa do falecido Cacique Djalma, com mais de
300 anos de história, que será transformada em um Memorial Indígena.
“Recebemos verbas da Áustria para esse trabalho. Ela é de pau a pique,
toda barreada, e vai ser coberta por uma argila branca. Só não vamos
conseguir fazer o telhado de sapé, porque, com a devastação da natureza,
não encontramos mais na região”, informa o Cacique Nilvando.
Alguns
integrantes da tribo trabalham agora na reconstrução da casa do
falecido Cacique Djalma, com mais de 300 anos de história, que será
transformada em um Memorial Indígena.
“A gente fica orgulhoso de fazer esse
trabalho, que há muito tempo estava sumido, resgatando a cultura”,
ressalta Antônio Luís da Silva, que lembra-se de ter morado em casas
assim, quando criança.
Eleito
há dois anos, o Cacique Nilvando tem a responsabilidade de representar o
povo Kaxixó nos contatos externos, liderar reuniões e tomadas de
decisões, seguindo a tradição de grandes líderes, como o Cacique Djalma,
reverenciado por todos na aldeia.
No memorial, serão expostos vários
objetos indígenas, como uma urna funerária infantil, encontrada em um
sítio arqueológico da região, onde os pesquisadores localizaram,
inclusive, vestígios de casas subterrâneas. “Nas tribos de Minas,
usava-se muito fazer as casas dentro do chão. Infelizmente, o local onde
elas foram descobertas está sendo descaracterizado, pisoteado pelo gado
que pasta ali. Temos fotos feitas em 1992 e 2002. Agora, já estão quase
todas destruídas”, lamenta o cacique.
Logo após o reconhecimento da tribo pela
Funai, os kaxixós também receberam uma verba de uma ong americana para
reconstruir a Casa de Rituais, que era um rancho de 10 m2 sem paredes e
coberto de capim, onde eram realizados tanto rituais de invocação de
espíritos, como missas, rezas e novenas. “Fizemos a casa sem usar prego,
nem arame. Só madeira, cipó e palha do coqueiro indaiá na cobertura.
Depois, ela apodreceu e não conseguimos mais cipó. Agora, está difícil
até conseguir a palha para uma nova reforma”, lastima o cacique.
Guerreira da Tradição,
ou fitoterapeuta, na língua não índia, Liderjane Gomes da Mata cuida da
horta com 79 espécies de ervas medicinais, indica tratamentos naturais e
sonha em expandir esse projeto para as cidades próximas.
“Para
isso, precisamos equipar a casa de secagem, que foi construída pelo
Estado, e de um farmacêutico para dar o aval em plantas como a
benzetacil e a insulina”, informa Jane, que é também professora de Uso
Território e uma grande cuidadora de animais. “Quando os meninos acham
filhote de passarinho caído ou algum bichinho sem a mãe, trazem pra mim,
eu cuido e depois devolvo para a natureza”, conta, com o tatu Juninho
no colo.
Como professora de Uso Território, além
de estimular as crianças a valorizar tudo o que é encontrado na
comunidade, ela trabalha com o artesanato. Conta que tudo tem um
significado especial. A pintura, por exemplo, é para se proteger dos
maus espíritos e também para se camuflar na mata. O cocar e os colares
também são uma proteção e um adorno.
Já o filtro dos sonhos foi uma resposta
recebida por um pajé que buscava solução para os pesadelos que tiravam o
sossego da tribo. “Conversando com os encantados, ele foi orientado a
ir para a mata. Lá, passou numa estrada onde tinha uma teia de aranha
intacta e pensou: ‘não passou nada por aqui’. Percebendo a teia de
aranha como uma barreira contra o inimigo, ele enrolou o cipó em arco e
passou colhendo aquela teia, com uma aranhinha no meio. Hoje, fazemos o
filtro ou mandala dos sonhos para proteger a comunidade, a casa contra
mau olhado, inveja, sonho ruim”, explica Jane.
Os índios Kaxixó são uma farsa produzida pela Funai para roubar terras produtivas?
Após reconhecer a autenticidade da etnia
kaxixó, em 26 de março de 2013, a Fundação Nacional do Índio (Funai)
publicou uma portaria delimitando 5.411 hectares nos municípios de
Martinho Campos e Pompéu como reserva indígena. Com isso, 40 fazendeiros
da região correm o risco de perder suas terras, sem direito a
indenização.
Á
esquerda, Nilvando no interior de uma das estruturas que compõem o
sítio arqueológico das três casas subterrâneas localizadas na região. À
direita, reprodução de uma aldeia subterrâea.
Essas fotos estão no
Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) do Povo Kaxixó, elaborado
por técnicos do Cedefes, com participação de moradores das comunidades
Capão do Zezinho e Fundinho, aprovado no Ministério do Meio Ambiente e
Funai.
Mobilizados contra isso, as lideranças
agropecuárias, empresas e produtores rurais tentam provar que os índios
kaxixó são uma farsa criada pela Funai para roubar terras produtivas.
“Estão criando uma etnia que não existe. São índios de olhos azuis”,
declara o presidente do Sindicato Rural de Martinho Campos, José Dirino
Arruda.
Segundo ele, o Sindicato está fazendo um
trabalho junto às entidades regionais e alguns políticos para tentar
reverter a situação. “Os produtores estão revoltados, e com razão. De
repente, da noite para o dia, você pode perder suas terras a troco de
nada. Isso é uma covardia feita com produtores”.
Segundo dados levantados, nessa área
prevista para a criação da reserva indígena, são produzidos mais de 30
mil litros de leite/dia, gerados cerca de 150 empregos rurais e
cultivados mais de 2.000 hectares de eucalipto.
Foto Carlos França 2013.
Um dos apoiadores desse movimento é o
deputado federal Domingos Sávio. Em entrevista ao repórter Carlos França
durante uma reunião em Pompéu, ele declarou: “Aquilo que é de direito
dos índios, a gente respeita. Mas estão querendo tirar produtores que
estão ali há séculos, o seu bisavô, o seu tataravô já era produtor rural
e vem, geração após geração, trabalhando, produzindo, cumprindo suas
obrigações. E nem se fala em desapropriar. A Constituição Brasileira
diz que a terra do índio pertence à União. Aí tornam-se nulos qualquer
documento, escritura. Só que ali não é terra de índio”.
Fazendeiros
e lideranças rurais de Martinho Campos e Pompéu estão mobilizados
contra a criação da reserva indígena, com apoio de políticos como o
Deputado Federal Domingos Sávio.
O deputado argumenta que a maioria do
povo brasileiro tem alguma descendência de índio, africano, europeu, mas
não se pode, baseado nisso, tirar o direito de um e dar para outro. “Ao
que tudo indica, a Funai contribuiu para produzir laudos falsos,
querendo dizer que havia aqui uma grande tribo indígena que ocupava
todas essas terras. Pode ter ocorrido isso antes de Joaquina de Pompéu,
há séculos atrás,quando havia índios em todo o território nacional”.
Domingos Sávio lembra, ainda que,
segundo a Constituição, “é considerada terra indígena qualquer terra que
no dia 5 de outubro de 88 estivesse pacificamente ocupada por índios.
Dizer que milhares de hectares da região estavam ocupados pelos índios
em 88 é uma mentira, e não podemos aceitar isso”.
Página do PGTA
Em resposta a ações judiciais movidas
pelos municípios de Martinho Campos, Pompéu e pelo estado de Minas, em
dezembro de 2016, o processo de demarcação da Reserva Indígena Kaxixó
foi suspenso.
Memórias Indígenas, segundo pesquisa publicada no PGTA
E tramita na Câmara dos Deputados a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que transfere a
competência na demarcação das terras indígenas da Funai para o Congresso
Nacional e possibilita a revisão das terras já demarcadas. Esse
conflito envolvendo kaxixós e produtores da região parece estar longe do
fim.
Texto Christiane Ribeiro
Matéria publicada na edição de abril/2017 do Nosso Jornal.
Fotos: Christiane Ribeiro, Marly Tavares e arquivo Kaxixó